No meu tempo é que era bom, há quem diga. Tudo era bom, barato, seguro, garantido. Na leitaria, o digno reformado perora: no tempo dele, sim, ainda havia respeito, não é como agora. O que há agora é pais e professores, derrotados na vã guerra dos telemóveis, vencidos mas não convencidos, a refilarem e a convencerem-se que no tempo deles não havia disso (Um “isso” que inclui telemóveis, jogos, filmes, etc.) mas havia livros. Livros a sério, não desses que agora há. No tempo deles, porque no tempo dos outros – que é hoje, que é o nosso – ninguém lê. E, antes que a acusem, a escola estrebucha e põe os putos a ler O memorial do convento e outros livros igualmente recomendáveis. Que os putos acham uma estucha, quase tão grande como a estucha que foi para mim ter de ler As viagens na minha terra, com a mesma idade deles. Zás! Pronto, já me atiraram a primeira pedra. Não me acertou felizmente e por isso apresso-me a dizer que é, esse livro, hoje, um dos garretts de que mais gosto, o que mais gosto, até.
Ninguém lê, pois. Mas só no ano passado foram editados em Portugal 13 milhões de livros! Ou, por outros números, e é isto que dá a medida das coisas: 187 milhões de euros em caixa.
Por isso vamos lá espreitar por outro lado: muitos livros, muita massa, sim, mas que livros? E para quem vai essa massa toda? Em Portugal, por exemplo, o livro mais vendido do ano, com 135 mil exemplares esgotados ao longo de 18 edições a fio, não foi uma obra de ficção, como já estava a aí a salivar o JRS, mas sim um livro baseado em factos reais, acontecidos. Mesmo! O título é “O céu existe mesmo” e é a história de um menino de 4 anos que foi operado de urgência e que aproveitou o tempo em que esteve inconsciente para ir até ao céu (mesmo!) e voltou de lá a contar como viu Jesus e o bisavô e o Diabo a tentar entrar no céu e os anjos a impedir-lhe o acesso e mais uns pormenores que não são para aqui chamados. Os livros de ficção, no entanto (talvez porque não se baseiam em factos assim tão mesmo reais), não venderam tanto. A obra de Alexandra Solnado, que inclui bestsellers como o “Há mil anos que não te via”, também escreve do Além, mas neste caso com a vantagem de ter os livros ditados pessoalmente por Jesus Cristo, é outra das mais vendidas, anda à volta dos 300 mil exemplares, em Portugal e no Brasil. É caso para se dizer que os nossos romancistas deviam ir passar umas temporadas lá acima a ver se conseguem passar além da meia dúzia que vendem. Mas – atenção! – isso também é se escolherem o céu certo (o de Jesus e da Virgem Maria, como o céu deste menino. Não é garantido o mesmo resultado no caso de um céu de Iavé ou de Alá ou de Krishna ou mesmo da Cientologia, se é que eles têm lá disso).
Não é viagem que esteja ao alcance de qualquer um. Acho eu. E os editores americanos sabem que é assim. Dos 58 mil títulos editados num ano, 90 por cento venderam menos de 2 mil exemplares. Num país com mais de 330 milhões de habitantes, é pouco, convenhamos. Mais: 50 por cento venderam menos do que uma dúzia de exemplares. Pouquíssimo. Não quero empastelar a leitura com dados e estatísticas, porque não é por aqui que me quero ficar, mas os mais curiosos poderão ir buscá-las a um artigo muito interessante que um amigo me enviou e que está na internet: No one buys books, de Elle Griffin. Esta senhora Griffin explica também que, não sendo por aí que elas se governam, as grandes editoras assentam a estratégia em livros com sucesso garantido: livros escritos (ou então “escritos”) por celebridades. Dos 370 milhões de dólares que a Penguin Random House, uma das “cinco grandes”, contabiliza, 200 milhões vão para pagamentos de adiantamentos a celebridades. Tanto pode ser a Amy Schumer, como a Michelle Obama, como o Bruce Springsteen: é dinheiro contado, à partida. Até porque as celebridades dispõem, também à partida, de um séquito de milhares e milhares de seguidores nas redes sociais, têm estruturas próprias a tratar da publicidade, das ligações aos médias, etc. etc. A maior “livraria do mundo” (A Amazon) dispõe de 50 milhões de livros disponíveis (uma boa livraria convencional, note-se, disporá quando muito de uns 50 mil) e dispõe também – o que mais importa – de um algoritmo que decide o que aparecerá em primeira linha, o que será sugerido, o que será promovido diante dos olhos incautos do leitor em busca de livros online. As grandes editoras (americanas) estão a aprender a fazer o mesmo, ou seja, a aprender o caminho mais fácil de chegar aos leitores, ou pelo menos ao bolso deles.
Mas então onde estão esses leitores? E que livros são esses 13 milhões que se vendem em Portugal? Nem Deus o sabe, Ele, que sabe tantas coisas e que inventa outras tantas. Há quem diga que se distribuem entre os livros de autores “queridos” e queridos do público, como o Chagas, ou o Minh’alma (o mais vendido em 2020: 96 mil exemplares). Há os livros “históricos”, com reconstituições “históricas” sem qualquer sombra de investigação histórica como a que os historiadores se dão ao trabalho de fazer e que provavelmente resultaria em livros muito menos interessantes para o gosto educado pelas séries televisivas e os filmes “de época”, com os seus clichés consagrados. Há os livros de receitas de todos os chefes e subchefes dos programas de culinária, os livros de receitas para ser feliz no amor, para ser feliz no casamento, para ser feliz no trabalho, para ser feliz em tudo, para ser rico, para ser magro, para ser belo, para ser.
Será já uma grossa fatia a juntar à dos livros escritos ou mandados escrever por personalidades famosas da televisão ou da sociedade, e aos livros anunciados ou recomendados pelos colunistas, os influencers, e todas essa tropa mercenária da sagrada missão da educação do gosto. Livros que não nos obriguem a puxar muito pela cabeça, isso é importante. Conheço muito boa gente que a última coisa que leram mais parecida com literatura foi a saga do Harry Potter. Daí partiram com a bagagem suficiente de fantasia, de imaginação, de criatividade, que é a que ainda hoje lhes basta. E que no fundo é o que as pessoas procuram. Não são os livros, não é a leitura – isso é só uma das formas de matar a mesma fome. E quem tem fome vai ao mais imediato, nem que seja a pizza congelada ou o hamburguer plastificado. E a outra fome terá as séries da televisão, as novelas televisivas, os livros de ler-e-deitar-fora, com “uma história para relaxar”, como dirão alguns em jeito de alibi. E que é um bom alibi, aliás, para aquilo que não é crime nenhum.
Alguém que não quero agora citar dizia que em literatura há os contadores de histórias e os escritores. Normalmente, uns e outros, ficarão implacavelmente arrumados nos tais da “meia dúzia” de exemplares da estatísticas. Fraca consolação será saberem que Miguel Cervantes não foi além dos 300 exemplares na primeira edição do seu Dom Quixote de la Mancha, uma triste figura que ainda hoje alimenta a nossa mesma fome de magia, de imaginação, de criação. Como o faz um bom contador de histórias desde tempos imemoriais em todas as latitudes. A história bem contada traz consigo emoções que nos são familiares, ou em que nos reconhecemos, despertam sentimentos que partilham a nossa comum humanidade. E que a formam, às vezes. E lhe dão forma, outras. Há histórias que se tornaram mitos, que deram alma a nações, a povos. Muita da literatura que hoje se publica em Portugal, uma boa parte até, são livros de bons contadores de histórias.
Mas, no dizer do tal, o escritor é ainda outra coisa.
Ando a ler um livro de Almeida Faria, “A Paixão”. É aliás a terceira vez que o leio – e a quem isso surpreenda direi que o faço do mesmo modo que ouço vezes sem conta certas músicas que para mim vão dar ao mesmo sítio, à mesma fome de mistério. Aqui, a história não é mais do que um pretexto para nos arrastar para um universo que sem este livro não existiria, um mundo criado pela escrita, feito de palavras, e onde a história é apenas como que um guia para a viagem onde nos embrenhamos impensadamente. Um mundo que nos desperta emoções e sentimentos muito mais indefinidos, desconhecidos, que mal emergem do inconsciente. E perturbadores. E que a cada leitura se renovam, descobrem novas veredas que a cada vez se parecem mais com os caminhos da nossa própria alma, à falta de melhor palavra, do que até com os caminhos que a história do livro percorre. É o que faz um escritor. E é essa (talvez) a magia maior da literatura.
O que tem isso a ver com o resto, com os tais noventa e picos por cento dos livros das estatísticas, isso já não sei, que não sou deste tempo.