no meu tempo…

No meu tempo é que era bom, há quem diga. Tudo era bom, barato, seguro, garantido. Na leitaria, o digno reformado perora: no tempo dele, sim, ainda havia respeito, não é como agora. O que há agora é pais e professores, derrotados na vã guerra dos telemóveis, vencidos mas não convencidos, a refilarem e a convencerem-se que no tempo deles não havia disso (Um “isso” que inclui telemóveis, jogos, filmes, etc.) mas havia livros. Livros a sério, não desses que agora há. No tempo deles, porque no tempo dos outros – que é hoje, que é o nosso – ninguém lê. E, antes que a acusem, a escola estrebucha e põe os putos a ler O memorial do convento e outros livros igualmente recomendáveis. Que os putos acham uma estucha, quase tão grande como a estucha que foi para mim ter de ler As viagens na minha terra, com a mesma idade deles. Zás! Pronto, já me atiraram a primeira pedra. Não me acertou felizmente e por isso apresso-me a dizer que é, esse livro, hoje, um dos garretts de que mais gosto, o que mais gosto, até.
Ninguém lê, pois. Mas só no ano passado foram editados em Portugal 13 milhões de livros! Ou, por outros números, e é isto que dá a medida das coisas: 187 milhões de euros em caixa.
Por isso vamos lá espreitar por outro lado: muitos livros, muita massa, sim, mas que livros? E para quem vai essa massa toda? Em Portugal, por exemplo, o livro mais vendido do ano, com 135 mil exemplares esgotados ao longo de 18 edições a fio, não foi uma obra de ficção, como já estava a aí a salivar o JRS, mas sim um livro baseado em factos reais, acontecidos. Mesmo! O título é “O céu existe mesmo” e é a história de um menino de 4 anos que foi operado de urgência e que aproveitou o tempo em que esteve inconsciente para ir até ao céu (mesmo!) e voltou de lá a contar como viu Jesus e o bisavô e o Diabo a tentar entrar no céu e os anjos a impedir-lhe o acesso e mais uns pormenores que não são para aqui chamados. Os livros de ficção, no entanto (talvez porque não se baseiam em factos assim tão mesmo reais), não venderam tanto. A obra de Alexandra Solnado, que inclui bestsellers como o “Há mil anos que não te via”, também escreve do Além, mas neste caso com a vantagem de ter os livros ditados pessoalmente por Jesus Cristo, é outra das mais vendidas, anda à volta dos 300 mil exemplares, em Portugal e no Brasil. É caso para se dizer que os nossos romancistas deviam ir passar umas temporadas lá acima a ver se conseguem passar além da meia dúzia que vendem. Mas – atenção! – isso também é se escolherem o céu certo (o de Jesus e da Virgem Maria, como o céu deste menino. Não é garantido o mesmo resultado no caso de um céu de Iavé ou de Alá ou de Krishna ou mesmo da Cientologia, se é que eles têm lá disso).
Não é viagem que esteja ao alcance de qualquer um. Acho eu. E os editores americanos sabem que é assim. Dos 58 mil títulos editados num ano, 90 por cento venderam menos de 2 mil exemplares. Num país com mais de 330 milhões de habitantes, é pouco, convenhamos. Mais: 50 por cento venderam menos do que uma dúzia de exemplares. Pouquíssimo. Não quero empastelar a leitura com dados e estatísticas, porque não é por aqui que me quero ficar, mas os mais curiosos poderão ir buscá-las a um artigo muito interessante que um amigo me enviou e que está na internet: No one buys books, de Elle Griffin. Esta senhora Griffin explica também que, não sendo por aí que elas se governam, as grandes editoras assentam a estratégia em livros com sucesso garantido: livros escritos (ou então “escritos”) por celebridades. Dos 370 milhões de dólares que a Penguin Random House, uma das “cinco grandes”, contabiliza, 200 milhões vão para pagamentos de adiantamentos a celebridades. Tanto pode ser a Amy Schumer, como a Michelle Obama, como o Bruce Springsteen: é dinheiro contado, à partida. Até porque as celebridades dispõem, também à partida, de um séquito de milhares e milhares de seguidores nas redes sociais, têm estruturas próprias a tratar da publicidade, das ligações aos médias, etc. etc. A maior “livraria do mundo” (A Amazon) dispõe de 50 milhões de livros disponíveis (uma boa livraria convencional, note-se, disporá quando muito de uns 50 mil) e dispõe também – o que mais importa – de um algoritmo que decide o que aparecerá em primeira linha, o que será sugerido, o que será promovido diante dos olhos incautos do leitor em busca de livros online. As grandes editoras (americanas) estão a aprender a fazer o mesmo, ou seja, a aprender o caminho mais fácil de chegar aos leitores, ou pelo menos ao bolso deles.

Mas então onde estão esses leitores? E que livros são esses 13 milhões que se vendem em Portugal? Nem Deus o sabe, Ele, que sabe tantas coisas e que inventa outras tantas. Há quem diga que se distribuem entre os livros de autores “queridos” e queridos do público, como o Chagas, ou o Minh’alma (o mais vendido em 2020: 96 mil exemplares). Há os livros “históricos”, com reconstituições “históricas” sem qualquer sombra de investigação histórica como a que os historiadores se dão ao trabalho de fazer e que provavelmente resultaria em livros muito menos interessantes para o gosto educado pelas séries televisivas e os filmes “de época”, com os seus clichés consagrados. Há os livros de receitas de todos os chefes e subchefes dos programas de culinária, os livros de receitas para ser feliz no amor, para ser feliz no casamento, para ser feliz no trabalho, para ser feliz em tudo, para ser rico, para ser magro, para ser belo, para ser.
Será já uma grossa fatia a juntar à dos livros escritos ou mandados escrever por personalidades famosas da televisão ou da sociedade, e aos livros anunciados ou recomendados pelos colunistas, os influencers, e todas essa tropa mercenária da sagrada missão da educação do gosto. Livros que não nos obriguem a puxar muito pela cabeça, isso é importante. Conheço muito boa gente que a última coisa que leram mais parecida com literatura foi a saga do Harry Potter. Daí partiram com a bagagem suficiente de fantasia, de imaginação, de criatividade, que é a que ainda hoje lhes basta. E que no fundo é o que as pessoas procuram. Não são os livros, não é a leitura – isso é só uma das formas de matar a mesma fome. E quem tem fome vai ao mais imediato, nem que seja a pizza congelada ou o hamburguer plastificado. E a outra fome terá as séries da televisão, as novelas televisivas, os livros de ler-e-deitar-fora, com “uma história para relaxar”, como dirão alguns em jeito de alibi. E que é um bom alibi, aliás, para aquilo que não é crime nenhum.

Alguém que não quero agora citar dizia que em literatura há os contadores de histórias e os escritores. Normalmente, uns e outros, ficarão implacavelmente arrumados nos tais da “meia dúzia” de exemplares da estatísticas. Fraca consolação será saberem que Miguel Cervantes não foi além dos 300 exemplares na primeira edição do seu Dom Quixote de la Mancha, uma triste figura que ainda hoje alimenta a nossa mesma fome de magia, de imaginação, de criação. Como o faz um bom contador de histórias desde tempos imemoriais em todas as latitudes. A história bem contada traz consigo emoções que nos são familiares, ou em que nos reconhecemos, despertam sentimentos que partilham a nossa comum humanidade. E que a formam, às vezes. E lhe dão forma, outras. Há histórias que se tornaram mitos, que deram alma a nações, a povos. Muita da literatura que hoje se publica em Portugal, uma boa parte até, são livros de bons contadores de histórias.
Mas, no dizer do tal, o escritor é ainda outra coisa.
Ando a ler um livro de Almeida Faria, “A Paixão”. É aliás a terceira vez que o leio – e a quem isso surpreenda direi que o faço do mesmo modo que ouço vezes sem conta certas músicas que para mim vão dar ao mesmo sítio, à mesma fome de mistério. Aqui, a história não é mais do que um pretexto para nos arrastar para um universo que sem este livro não existiria, um mundo criado pela escrita, feito de palavras, e onde a história é apenas como que um guia para a viagem onde nos embrenhamos impensadamente. Um mundo que nos desperta emoções e sentimentos muito mais indefinidos, desconhecidos, que mal emergem do inconsciente. E perturbadores. E que a cada leitura se renovam, descobrem novas veredas que a cada vez se parecem mais com os caminhos da nossa própria alma, à falta de melhor palavra, do que até com os caminhos que a história do livro percorre. É o que faz um escritor. E é essa (talvez) a magia maior da literatura.
O que tem isso a ver com o resto, com os tais noventa e picos por cento dos livros das estatísticas, isso já não sei, que não sou deste tempo.

foi lindo

o desfile do 25 de abril. As pessoas a encherem por completo a avenida. E um ar de festa e de alegria que há muito não se sentia. Porque se sente! Sem a tensão e agressividade das manifestações sob o olhar da polícia de choque. Sem as correrias, sem os gritos, sem o medo. Foi lindo!
Havia os partidos, os sindicatos, as respetivas organizações satélites, tudo com as respetivas bandeirolas e cartazes fabricados em série e todos iguais, com as respetivas palavras de ordem recicladas de outros momentos, havia isso, claro. Mas não é desses que eu falo, não eram esses que davam a cor ao rio. Era antes um nunca acabar de gente à solta, com cartazes improvisados, feitos à mão, com frases inventadas na hora. Uma mulher de cabelo curto e óculos escuros, aparentemente sozinha, com uma cartaz “Vim enterrar o fascismo” escrito no que parecia o cartão de uma embalagem qualquer. É o tipo de coisas que me deixa a pensar. Onde teria ido ela buscar a ideia, a decisão e a determinação? Também um cartaz bem grande com o desenho simplificado de uma casa. Só isso. Como uma mensagem cifrada para quem tiver ouvidos para ouvir. E a certeza de que o hão de entender. E a multiplicação dos grupos e movimentos que alimentam uma nova realidade ainda não cristalizada em verdades oficiais. Como sinais de antecipação do novo mundo a nascer, a querer irromper. Com slogans imaginativos e inesperados, ainda sem ter de obedecer a nenhum cânon nem a manuais de diretivas. Agora que os jornais e as televisões estão cheios de imagens da gente que há cinquenta anos começou isto tudo, podemos ver melhor a diferença da gente que lhes dá continuidade, as novas preocupações, as novas ideias. Às tantas, no meio das Mães do Clima, onde me incluía, dei por mim ao lado de pequenos ranchos que desfilavam a cantar (a quase italiana Cooperativa Rizoma a cantar a Bella Ciao), grupos a dançar (um bloco da Columbina Clandestina a cantar e a dançar como se fosse carnaval), grupos a gritar palavras novas para os meus ouvidos. Até o Chip, o meu cão, se juntou ao coro da Libertação Animal – não é verdade, ia mas era todo encolhido e baralhado com a confusão em que eu (impensadamente!) o tinha metido. Havia os ativistas climáticos do Climáximo e da Greve Climática Estudantil; havia o grupo “Radicais do Tricô”, que tricotam “por 1,5 graus e justiça climática”, havia a Frente Grisalha pelo Clima; havia os grupos de gays e minorias sexuais; havia anti-racistas a lembrar-nos que “O 25 de Abril nasceu em África”, o que é verdade!; havia aqui e ali bandeiras palestinianas (muitas) e ucranianas (menos); havia um grupo curiosíssimo – Rede para o Decrescimento – que além de Democratizar e Descolonizar, acha imperioso Decrescer, procurar um modelo económico que não ignore os limites do planeta e o colapso climático iminente. E muitas pessoas isoladas ou em grupos de amigos, que vieram porque sim. E porque esta era a maneira de dizerem esse sim.
O mais original e mais criativo de todos? Um cartaz improvisado, empunhado por uma menina dos seus catorze anos: “Viva a Liberdade”. Dirão: mas isso é que é original? Quantas vezes vimos isso? Pois vimos. Mas não viu ela. Como quando em pequenos, passados anos a querer o que outros quiseram por nós, descobrimos pela primeira vez o poder de sermos nós a querer, a primeira vez que o menino pequenino ergue a voz e diz “Mas eu quero!”. Aquela menina dos seus catorze aninhos, que mais não teria, proclamava pela primeira vez à sua maneira , a importância do que tinha descoberto e descia a avenida com o cartaz feito por sua mão: Viva a Liberdade. Não é lindo? Eu acho lindo.

entre Deus e Copérnico

nos tempos bíblicos, tudo isto era bem mais simples. Se a humanidade descarrilava e começava por aí a fazer asneiras, Deus falava com o profeta que na altura estivesse em funções e dizia-lhe para avisar o pessoal que ou ganhava juízo e fazia o que Ele mandava ou vinha aí um castigo de todo o tamanho (Somorra e os afogados do Dilúvio que o digam). Que também podia ser a pura e simples extinção da Humanidade para começar de novo da estaca zero. Eram tempos em que os homens não duvidavam dos avisos que lhe eram mandados. Baixavam as orelhas e faziam (nem sempre, mas quase sempre) o que os Profetas lhe diziam.
Nada disso é assim, nos nossos dias.

Profetas não nos faltam: ele são os cientistas, ele são os ativistas climáticos, ele a ONU, a Nasa, a UE, e por aí fora… E não faltam catástrofes a confirmar os avisos: são incêndios, são inundações, são tufões, é o degelo polar. Mas qual quê? Enquanto não houver uma nuvem de gafanhotos a cobrir o céu de Lisboa numa forma que quiser, bem podem falar eles (os profetas da desgraça). Enquanto não houver por aí um braço misterioso que pela calada da noite roube a vida a todos os primogénitos coitadinhos, não há praga que nos convença da necessidade de renunciar ao sossego e ao conforto que nos assegura a queima continuada de combustíveis fósseis. Se bem que as coisas começam a andar lá por perto. Não é que ainda esta semana os cientistas nos advertiram que as mortes causadas pelo aumento de temperatura do planeta (sem contar as mortes causadas pelas catástrofes climáticas) aumentaram em 30%?
Deus não precisava de grande precisão de números e de cálculos. Era omnisciente. Se Ele dizia que era assim, é porque era assim. Hoje apenas podemos contar com A Ciência e tudo fia mais fino. E mais complexo. No caso de que falo, o aviso vem-nos dos investigadores da Organização Meteorológica Mundial e os do Programa Copernicus da União Europeia. E esses sabem do que falam. O Copernicus dedica-se à “observação da Terra” e reúne dados da Agência espacial, dos satélites Sentinel, encarregados de reunir dados relacionados com a Terra, o mar, a atmosfera, as alterações climáticas, etc. E conta ainda com inúmeras antenas em universidades, autoridades públicas, e uma data de édecetras participantes. A Terra não dá um espirro sem que o Copernicus não o saiba. E pelo vistos o espirro já passou ao grau de sintomas mais sérios. E começa a chegar à nossa rica saúde!
E então agora são os médicos a entrar ao barulho. Um exemplo: o Journal of Ethics da Associação Médica Americana publicou recentemente um artigo (Why Climate Literacy Is Health Literacy) chamando a atenção para o imperativo ético de ajudar as pessoas a compreender a informação sobre alterações climáticas e os seus efeitos sobre a saúde. Para poderem agir com conhecimento de causa e poderem mudar o que se pode mudar. Um estilo de vida “rico em carbono” reflete-se naquilo que comemos, onde moramos, o que vestimos, a frequência com que andamos de avião (tantas vezes desnecessariamente), as distâncias que percorremos de carro (às vezes bem curtas e que podiam fazer-se de outro modo), o que vestimos e de um modo geral o que consumimos. E, como se sabe, quando as decisões são más o corpo é que paga.
O problema, porém, (outro problema) é que os sistemas de saúde – refiro-me sobretudo aos dos países de democracias avançadas, que é uma maneira simpática de pôr as coisas – não estão preparados para responder a uma situação como a das crises induzidas pelo aquecimento global. São sistemas focados sobretudo naquilo que poderíamos designar como “medicina de socorro imediato”, de assistência individual, digamos assim, em vez de se centrarem nas questões de saúde pública que abrangem toda a gente. Resulta daí o obscurecimento generalizado das determinantes sociais da saúde, as que têm a ver com a educação, o emprego, a nutrição, a habitação e outros fatores estruturais e culturais. Pessoas que vivem em áreas pobres, com poucas oportunidades educacionais, com acesso limitado a uma alimentação adequada, a habitação decente, vivem menos tempo e apresentam uma taxa de mortalidade mais elevada. Se a pele deles for um pouco mais escura, negra ou castanha, acresce uma boa dose de racismo implícito nos canais de acesso aos cuidados de saúde. E, como já se adivinha, com as profundas desigualdades que lhes estão associadas. Um sistema de saúde centrado na medicalização dos cuidados de saúde acaba por beneficiar prevalentemente a pequena proporção de doenças em que se especializou a medicina moderna, mais ocupada em curar do que em prevenir. As razões para esta orientação são múltiplas – diz o jornal de bioética, que estou a aqui a ler: Por um lado, os grandes centros e clínicas médicas são também onde estão os empregos de saúde e, por outro lado, o fascínio cultural que rodeia a ideia de “salvar pessoas por métodos clínicos” tornou a medicina tipo “oficina de reparações” a preocupação central da medicina clínica.
Os factos são estes. O que fazemos com eles é outra conversa. Ou sequer se os queremos conhecer. Nem saberia dizer se os cientistas seriam mais ouvidos no caso de entrarem em rebelião, e se desatassem a pintar os números fatais nas fachadas dos ministérios, ou desatassem a travar a circulação rodoviária para mostrar aos incréus todo o resto que pode ficar travado um dia destes. Às tantas, vai-se a ver, ainda eram detidos, presos e julgados por desobediência à autoridade, se não coisas piores. E estamos falados.

Mas, antes de ir pregar para outra freguesia, só mais uma coisinha. Já vi que está aí alguém mortinho por saber como é que dei por mim a interessar-me por questões de medicina, de biomédica e de saúde em geral, eu que de medicina só sei aquele pouco que cada louco sabe, tirando uma ou outra consulta ao Dr. Google, levado pelas queixas de uma hipocondria crónica. Pois fiquem a saber: o que li no tal jornal de bioética (e de que aqui falei), li-o num discreto blogue (de Rosalvo Almeida), que frequentemente fala de questões destas, sobretudo as questões de vida e de morte associadas à prática da medicina. Leio-o às vezes também em artigos no Público e gosto da forma como aborda as questões: árbitro imparcial no desafio que todos andamos por aqui a jogar, pronto a sacar implacável do apito diante de qualquer fora do jogo ou de grande penalidade seja de que equipa for. Fazem falta estes árbitros – whisteblowers, chamam os americanos a este tipo de sentinelas. Vale bem uma visita: https://rosalvoalmeida.blogspot.com/

da boca para fora

veio cá o Jean Némar. Chegou afogueado. Que tinha uma boa para me contar, que tinha sido entrevistado, que (já nem me lembro). E contou: andava (ou anda) por aí uma televisão estrangeira a fazer uma reportagem sobre o 25 de abril, o futuro do 25 de abril. Fazem perguntas a quem passa e também calhou ao Jean Némar. E, pateta como é, que lhes foi ele dizer, quando lhe perguntaram como via ele o 25 de abril do futuro? Que o via sentadinho a uma mesa, com uma manta pelos joelhos, a tomar um chazinho e a jogar resignado uma bisca lambida com dois amigos, o 1º de dezembro e o 5 de outubro. E diz um deles: se houvesse mais um sempre se podia jogar a sério. E vai o outro: pode ser que dêem licença de saída ao 25 de novembro e ele apareça por aí e já dava para uma suecada.
E ria-se, o pateta, enquanto me contava isto. Que havia de lhe dizer? O que sempre lhe digo quando se sai com coisas do género: Sempre tens cada uma! Nunca mais ganhas juízo.

Eu sei que ele diz estas coisas, mas é muito capaz de fazer o contrário. É só da boca para fora. Quase que aposto que no dia 25 lá estará a descer a avenida a meu lado junto ao grupo dos ativistas climáticos e das Mães do Clima. Até porque eu também sou uma das mães do clima. E onde eu estou quase sempre está ele também (pelo menos até hoje tem sido assim).
Por outro lado, não vejo mal nenhum em ver estas coisas com algum distanciamento. Antes que tudo se transforme numa azeda romagem de agravados ou numa marcha de tribos aguerridas em disputas de território ou de decibéis, sem lugar para a alegria inicial, inteira e limpa com que o dia nos foi anunciado. Ou (e isso então seria o pior!) antes que se transforme no cerimonial com lugares cativos e discursos previstos (e previsíveis) dos feriados de calendário.

Feliç Anibersairo!

Hoje é só para dar os parabéns ao burrinho meu afilhado. Não queria deixar passar em branco a data. Sempre são 19 aninhos! De qualquer modo, não fosse eu esquecer-me (Impossível!!) a associação que olha pelos burrinhos em Miranda também me mandou um postalinho a zurrar-me bem a tempo o imperdoável que seria deixar passar tão feliç anibersairo (em mirandês, pois então! que é assim que por aquelas banda se fala e se zurra).
Quem me dera poder lá ir com um braçado de cenouras frescas para o Atenor (de seu nome – não porque eu, seu padrinho, lho tenha dado, mas porque assim se chama a aldeia onde nasceu).
Facilmente me vejo a passear com ele pela arreata (não teria coragem de lhe impor o meu peso e o dos meus trabalhos, que são muitos) pelos caminhos de Atenor e das aldeias vizinhas, que não conheço e que por isso posso imaginar verdejantes, floridas e acolhedoras, como por aqui não há. Que demoradas conversas não haveríamos de ter, o Atenor e eu, por esses caminhos onde ninguém passa, tirando um ou outro pastor pastorinho à procura de uma ovelha que se transviou na serra, algum burrito Platero que se esqueceu do dono, algum mirandum fugido das guerras que por lá possam existir, e que eu estou em crer que não, que não existem, que tudo ali há de ser sossego e lonjura. Isso é o que eu digo, e imagino, aqui ensarilhado nas mil armadilhas que o turismo e o alojamento local armaram à minha porta.

Dois pesos e duas medidas

Gaza, ainda.
Com a passagem do tempo, os números vão substituindo as palavras ao descrever a realidade. 22 mil mortos (70% mulheres e crianças), 5 mil desaparecidos, do lado palestiniano. Cerca de 1500 mortos do lado israelita. Um milhão e meio (85% da população) de deslocados em Gaza. 23 (de 36) hospitais destruídos; 104 escolas arrasadas. Sem falar na falta de água, de alimentos, de eletricidade. Os números têm este efeito: de embotar as emoções, de esconder a realidade ( a ralidade, “essa megera sem idade, sem tempo, sem fronteiras”, dizia o Manuel Resende. E sem rosto, sem nome, acrescento eu agora).
Um sobressalto, quase inesperado, quando aparece alguém com um nome, um rosto. Quando, por exemplo, ouvimos a gravação em direto do assassinato de uma menina de 6 anos (chamava-se Hind), morta a tiro pelos tanques do exército israelita (tanques!!) quando estava bloqueada dentro de um carro, no meio dos cadáveres da família. Ou quando há dias o exército israelita matou sete membros de uma organização internacional que distribuía comida à população. O itinerário e o local dos carros em que seguiam tinha sido comunicado ao Exército. Tinham nome: John Chapman, James Henderson, James Kirby, Lalzawmi (Zomi) Frankcom, Jacob Flickinger, Damian Sobol, Saif Issam Abu Taha.
É só então que a guerra, a fome, a miséria, os crimes, ganham para nós alguma realidade.
E é por isso que, antes que tudo isso, que esses nomes, se diluam no mar dos números cada vez mais avassalador (e anestesiante) há coisas que é preciso ficarem ditas.
Para que a Terra não esqueça.

Há que falar no crime sem nome, na chantagem despudorada, do Hamas ao continuar a reter os reféns do ataque que desencadeou esta guerra (mais um episódio de uma guerra antiga). Sujeitos a todo o tipo de torturas, de humilhações morais, físicas e sexuais, esses reféns tornaram-se para o Hamas em “moeda de troca” numa negociação com assassinos dos dois lados. Não podemos pactuar com isso. Não se pode resgatar um crime com outro crime.
Há que falar também na implacável máquina de morte instaurada pelo Exército israelita: a concentração forçada da população, refém no seu próprio país; os ataques a pessoas indefesas; as destruições de hospitais, escolas, infraestruturas e de tudo o que faz falta a um mínimo de dignidade na vida. Para onde irão os deslocados, se nem casa já tem para onde voltar? E nenhum “Exodus” os levará para refúgio nenhum.
Os crimes do Hamas não podem ser usados para Israel invocar imunidade para os seus próprios crimes contra uma população indefesa. Nem sequer – é terrível dizer isto, mas há que o dizer contra tudo e todos. Agora – nem sequer as perseguições de que foi vítima ao longo da História, deveriam permitir a Israel invocar imunidade para os crimes que agora comete contra uma população indefesa.
Aqueles que em tempos defenderam o direito do povo judeu a uma pátria, os que viram no novo país, na cultura comunitária dos kibbutzim, um sinal de paz para o futuro, são os mesmos que hoje não se podem calar diante da infâmia a que assistem.

Há tempos, uma amiga (judia, por acaso) com quem discutia a situação em Israel – por altura do assassinato de Yitzhak Rabin – dizia haver dois pesos e duas medidas na opinião europeia. Ela dizia “double standards”, mas vem a dar no mesmo. Concordei com ela. Somos mais exigentes com Israel. Em nome dos valores que partilhamos (ou dizemos partilhar, e que usamos como argumentos na defesa de Israel). E sobretudo, sobretudo, era o que eu lhe dizia, porque ao criticar Israel tínhamos a noção de que havia a possibilidade de mudar o seu comportamento. Havia a possibilidade de corrigir os seus erros – havia em Israel instâncias, instrumentos capazes de dar ouvidos às críticas. Havia também em Israel vozes que se levantavam e se faziam ouvir, as vozes dos justos, como dizíamos.
Havia – mas ainda haverá?

Ritos de passagem

O Coiote fez 18 anos. Não é uma data qualquer. Para muita gente – e acho que também ele via assim a coisa – é uma espécie de marco que assinala a emancipação dos laços (leia-se das peias) da família e, diz quem sabe, a integração no grupo social, a aquisição do status de adulto. Há sociedades inclusive que marcam a data com cerimónias e rituais de iniciação emblemáticos E acho que também o Coiote, de certo modo, sentiu que havia que festejar o dia de uma maneira que não fosse simplesmente mudar a folha do calendário.
Nas sociedades tradicionais, os rituais incluíam uma data de coisas que hoje nos pareceriam gratuitas, bizarras, e até cruéis. Desde longas vigílias ao frio ou ao calor extremos, provas de resistência a torturas e castigos físicos, tatuagens simbólicas, escarificações no rosto ou noutras partes do corpo e, pelo menos para os machos, várias provas a mostrar a força, a potência, a virilidade exigidas pelo papel dos adultos nessas sociedades.
Não é o caso, obviamente. O Coiote já se contentava com uma g’anda festa com os membros da tribo, onde não houvesse lugar para pais nem outros adultos de controlo. O único problema era esse precisamente: como pôr os pais fora de casa e ficar dono do território, livre de regras e de limites.
Estamos na quaresma, e daí a ideia: porque não os impontar para Braga, para as solenidades da Semana Santa, suas soleníssimas procissões, seus farricocos e fogaréus? E como brinde visitavam a tia Lurdes, com seus rissois e frango guisado, suas compotas e doces vários. E ainda um passeio a Guimarães, restaurada, alindada e renovada e com chuva que não pára. E lá vou eu e a Cereja a cumprir a penitência. Só que… procissões nem vê-las, canceladas pelo mau tempo. Ninguém queria ver os Cristos agonizantes a correr pelas ruas inundadas nos seus magníficos andores, anjinhos mordomos e autoridades civis e militares a correr sem decoro, sem pompa e sem a gravidade cerimonial da praxe. Os farricocos, com menos compostura a defender, ainda palmilharam a cidade (de manhã) descalços, com aquele sinistro balandrau que os cobre da cabeça aos pés, só com uns buracos para os olhos, a agitar as matracas, esperando que o ruído estrepitoso que elas fazem pudesse convencer os bons cristãos a irem ao confesso e a prepararem a chegada do Senhor Ressuscitado. Este ano, nada disso. Nem Cristo foi dado por morto, nem foi enterrado na macabra Procissão do Enterro do Senhor que deveria percorrer a cidade, arrastando pelo chão os varais dos mordomos e dos pálios, único som a romper o silêncio da cidade às escuras, não fossem as risadas e a animação nas esplanadas dos turistas. Tudo isto para grande desânimo da meia Galiza que tinha invadido a cidade à espera da anunciadíssima encenação do santíssimo horror e agonia de Cristo.
Guimarães não nos saiu melhor: uma chuva persistente que nos roubou as exclamações de admiração e de louvor que haveria de nos merecer o centro reabilitado e renovado e restaurado por um daqueles fundos comunitários europeus que tornam qualquer cidade num brinquinho, sem lugar para janelas de alumínio ou portas que não obedeçam ao desenho protocolado, nem para quaisquer outras fantasias de proprietários menos adeptos do como-era-dantes. Tudo limpo, ordenado, impecável, ideal para postais ilustrados e para filmes de época. A pedir meças a Óbidos ou Bruges, quanto a mim. Quem aproveitou foi a Cereja: ficou a saber tudo sobre os bordados de Guimarães (a não confundir com os de Braga ou de Viana, apesar de exatamente iguais). Aqui é o bordado de crivo, o canotilho, o ponto pé de flor e outras minudências exemplificadas pela dona da loja onde fomos calhar (ou encalhar, porque a inundação lá fora assim implicava).
E, entretanto, o Coiote? Conhecendo-o como o conheço, a ele e à sua tribo, uns quarenta galfarros e galfarras, estava a vê-los a passar aqueles dois dias e noites em serena meditação sobre o sentido da vida e as responsabilidades que a maturidade traz consigo, entre jejuns e veladas de armas diante da imagem veneranda do Santo Condestável ou de outro Galaaz que melhor calhasse. Ou então não. Pode muito bem ser que em vez de vigílias e jejuns tenham passado o tempo em desbunda desbragada entre ganzas e música em altos berros, sustentados a massa de atum ou de salsichas, regada a cervejolas (jolas, no dialeto local) e sangria .
Antes isso, que não é todos os dias que se faz 18 anos.
E quando eu e a Cereja voltámos tínhamos a casa arrumada, a cheirar a lavada de fresco e um recado na porta à nossa espera.


Antes do Dilúvio

Há coisas que leio que me dão a entender que haverá quem ande já a precaver-se (e a nós todos) de algum fim do mundo que por aí venha. São tantas as ameaças que pesam sobre nós e sobre o planeta que é mais que certo que há boas razões para esses alguéns tomarem tais precauções. Um pouco como a Arca que, no mito do Dilúvio, Noé construiu para pôr a salvo o que seria depois necessário para recomeçar o mundo que estava prestes a desaparecer.

Acho que todos conhecem a história: Em tempos que já lá vão, uns bons cinco séculos antes da nossa era, o iroso Deus da Bíblia “arrependeu-se de ter criado o homem cujos pensamentos e desejos tendiam sempre e unicamente para o mal”. Decidiu então eliminar da face da terra o ingrato que tinha criado. Abriu uma excepção para o bom do Seu servo Noé, que apesar de ir já nos seus seiscentos anos de vida (ou por causa disso mesmo) estava isento de tais pecados. Mandou-lhe então construir uma Arca de madeiras resinosas, com tais e tais medidas, e que nela embarcasse a família, os trapinhos e um casal de cada espécie de animais. Noé assim fez e logo “nesse dia se romperam todas as fontes do grande abismo e abriram-se as cataratas do céu”. Choveu torrencialmente durante quarenta dias sobre a Terra e as águas cobriram todas os altos montes existentes debaixo dos céus. Depois tudo iria recomeçar de novo.
Haverá alguma verdade no mito bíblico. A arqueologia, a paleontologia e o estudo da distribuição das espécies no planeta na era moderna parecem confirmar isso mesmo: que nessa época terá ocorrido um fenómeno com as caraterísticas descritas na Bíblia nessa zona do globo, ou mais precisamente na região da Mesopotâmia. Aliás, é o que nos conta também uma outra (belíssima!) narrativa, mais antiga, e que possivelmente serviu de base ou de inspiração ao autor do livro do Génesis da Bíblia: “A Epopeia de Gilgamesh”. Também aqui se fala num dilúvio, no aniquilamento da espécie humana, na construção de uma Arca com tais e tais medidas e conformação. De diferente, é que em vez do iracundo Iavé bíblico quem aqui decidiu o aniquilamento da humanidade foram os cinco deuses senhores das terras entre o Tigre e o Eufrates – Ea, Anu, Enlil, Ninurta, e Ennugi. Mas acontece que tal secreta decisão foi secretamente revelada por Ea a Utnapishtim, instando-o a construir a tal Arca antes que se abrissem as barreiras das grandes profundidades. Outra diferença: no mito mesopotâmico, a Arca deveria abrigar não só todas as espécies de animais domesticados e bravios, como também todos os artefactos e utensílios que o homem tinha criado, coisa de que Iavé não curou. Nem uns nem outro, porém, pensou em preservar as sementes de onde pudesse surgir um futuro Jardim do Éden.

Quem pensa nisso, já nos nossos tempos, é por exemplo o Sr. Raul Rodrigues, em Ponte do Lima, bem longe das paragens da Terra Prometida ou do atual Iraque. Sem se dar à canseira de construir Arca nenhuma, decidiu por sua mão começar a remendar o mundo que via desaparecer a olhos vistos. Começou pelas maçãs (se calhar por achar que algum dia alguma futura Eva iria precisar delas para recomeçar a história do princípio). Conheci-o numa reportagem de Edgardo Pacheco no jornal Público. Aí se conta que este professor da Escola Superior Agrária de Ponte do Lima se dedica no campo da escola a plantar ou enxertar as árvores que recolhe em passeios pelos campos, por terrenos abandonados, onde quer que ouça falar de maçãs que já não há. Já lá tem mais de cem variedades regionais. O repórter fala de maçãs como a maçã sangarinha, porta da loja, canela, perna de pisco, verdeal, camoesa verde, camoesa de Coura, de Lanheses, riscadinha da Feira, melápio, espriega e tantas outras que nos deixam a pensar no que andamos a perder.
Digam lá há quanto tempo não metem o dente numa bela maçã camoesa. Ou numa maçã da porta da loja. Ou numa maçã da boa vontade. Ou outras belas maçãs portuguesas como a maçã do caco, a maçã de espelho, a maçã de guerra, a maçã de pé comprido, a maçã de três em conca, a maçã do adro, a maçã galega, para me ficar por aqui. A invasão das golden delicious, ou das starking ou das granny smith ou das pink lady, vindas da Nova Zelândia, do Chile e sei lá de onde mais foi-nos roubando os sabores da variedade. Claro que são ideais para a produção em larga escala, e são extremamente rentáveis e têm o calibre exigido pelo mercado europeu e mundial, além de terem belas cores e de não saberem a nada. Mas, como pode acontecer às mais belas maçãs, têm também um bicho a roê-las: são muito mais frágeis e expostas a doenças que nem sempre é fácil debelar. Há epidemias vegetais que só podem ser combatidas através do recurso a espécies resistentes. No futuro a humanidade poderá vir a ter necessidade das plantas autóctones e das suas caraterísticas. E se nessa altura elas já não existirem?
Se calhar foi também nisso que pensou o Sr. Raul Rodrigues e, como ele, outros que tais no Centro de Experimentação Agrária de Tavira onde está reunida uma das maiores coleções de árvores de fruto do país, com um por assim dizer Banco Genético de centenas de variedades de espécies de fruteiras. Só de alfarrobeiras há 44 espécies. E há citrinos e castas de vinha, romãzeiras, amendoeiras, macieiras, recuperadas do sotavento ao barlavento algarvios, agora distribuídos pelos 29 hectares do Centro.

São muitas as maçãs (e as frutas) a desaparecer e poucos os “arqueólogos” a trazê-las à vida. O problema é que nada disto se faz sem fundos, como se adivinha. E os fundos públicos estão mais virados para as espécies com bons calibres e boas cores para o mercado. E como dar continuação ao estudo, à caraterização e à preservação deste material genético para as gerações futuras? Pois, lá está: apesar da boa vontade e da carolice de alguns, falta pessoal, faltam meios, faltam fundos e (sobretudo!) falta uma política nacional que nos prepare para o pequeno Dilúvio que as alterações climáticas já trazem na barriga. Sem Deus nenhum que nos dê aviso prévio e instruções precisas para a construção da Arca, somos nós que temos de pensar nisso.
Não sei se haverá muitos ministros a ler este blogue. Se calhar não. E é pena. Porque podia levar daqui algumas boas ideias. Enquanto ainda servem para alguma coisa. O Dilúvio que aí vem pode muito bem ser apenas o fim do mundo tal como o conhecemos E esse não desaparece; vai desaparecendo, vai-se extinguindo.
E é que não estou a ver Arca que nos valha.

Para não dizerem que

Estive agora a falar com o Jean Némar. Tinha lido o postal sobre os pintainhos, tinha ficado impressionado, tinha perdido o apetite e tinha umas coisas para me dizer. E o que ele me disse foi que achava que havia aqui demasiadas guerras, demasiados massacres, demasiadas nuvens negras sobre o planeta inteiro, que já de si não anda muito desanuviado. Dizia ele: “Ó homem, mas tu não verás mais nada senão desgraças? Não tens mais nada de que falar?” E tenho, por acaso tenho. E para não me virem mais com essa, hoje vou falar de flores.
Das que eu mais gosto, que são essas que andam por aí à solta e não se vendem nas floristas. Nos meus passeios pelo bairro e arredores, passo às vezes por descampados onde o meu cão gosta de ir cheirar as novidades e os recados que os amigos dele lhe deixam e onde proliferam estas flores despretensiosas. Já tenho trazido muitas para casa, que depois planto em vasos. Papoilas, as minhas preferidas, mas também soagens, pampilhos, borragens, o que estiver à mão, consoante as estações. Não se têm queixado muito da mudanças de ares, talvez por estarem um bocadinho fartas do isolamento em que viviam e do cheiro dos escapes. Uma soagem que cá tive cresceu tanto tanto que ainda estou para perceber a razão de tal mistério.
Não é só nos descampados. Também as ruas começam a dar sinal da primavera que aí está a chegar. Alinham-se ao longo dos passeios, contra as paredes para fugir aos carros e às pisadelas e formam quase uma guarda de honra para nós que passamos. Há quem se insurja, que ache isto uma pouca vergonha, uma prova do desleixo da junta de freguesia ou da Câmara. Não sei porquê. As ruas ficam muito mais bonitas, um ajardinamento improvisado e ao gosto de cada estação. Não são nenhum empecilho para quem vai no passeio e até as abelhas aproveitam. Veja-se este friso de dentes-de-leão que surpreendi na rua aqui perto, por onde passo tantas vezes. Despontaram de um dia para o outro, a seguir às chuvadas que tivemos a semana passada. E logo trataram de mostrar o que valem, que é pouco o tempo que lhes é dado antes que qualquer lufada de vento lhes leve as cabecinhas diáfanas a semear a sua sementinha por tudo quanto é sítio. Tão leves, tão voláteis e tão volúveis que há também quem lhes chame “amor de homem”.
Pronto, aqui fica. Para não dizerem que não falei de flores.

Salvem os pintainhos (e a Humanidade, já agora)

Não sei se quem me lê terá visto uma reportagem que passou há dias na televisão. Para minha desgraça, eu vi. Vejo pouca televisão, mas às vezes depois do jantar ponho-me a zapar pelos canais fora. Azar meu, há uma qualquer pontaria oculta nisto que me leva mais vezes do que as que eu gostaria para cenas e filmes que depois ficam a assediar-me o sono. Foi o caso. Era uma reportagem sobre a criação de galinhas poedeiras e o trágico fim dos pintainhos machos que elas geram. Mal os pintainhos saem da casca, antes de terem tempo de ir direitos à ração como lhes estava a apetecer, sai-lhes. ao caminho um senhor especialista em sexação (raio de profissão!), capaz de distinguir pintainhos de pintainhas e que trata de separar o destino de cada qual: eles para um lado elas para outro. Elas para uma vida feliz de poedeiras como a mãe, que vão pôr imensos ovos para o mercado e para criar mais galinhas poedeiras e por aí fora. Eles é que não: eles (e aqui peço às pessoas mais sensíveis que passem para o parágrafo seguinte) eles são atirados para uma espécie de liquidificador onde são sujeitos a um processo a que na indústria da especialidade chamam “maceração” que é a maneira como não se deve dizer atirados vivos para uma amálgama de pintos, penas, ovos inférteis e cascas de ovos para serem triturados. A pasta sanguinolenta que daí resulta é depois tratada e desidratada. Há quem use isso como fertilizante; outros (e acho que em Portugal são destes) transformam essa papa numa farinha proteica que depois usam como ração para cães e gatos. Eu sei que dá vontade de passar já-já a vegetariano, e ir daqui assaltar aviários para libertar os pintainhos tão fofinhos condenados a morte tão macaca. Os dos aviários defendem-se com um ar falsamente compungido e dizem que essa é a maneira de não desperdiçar nada (e são dezenas de milhar de pintainhos por mês, em Portugal; e sete mil milhões por ano no resto do mundo) e também de evitar uma subida de cerca de 50% nos preços dos frangos caso se renunciasse à prática. Será que haveria assim tanta gente capaz de renunciar ao seu belo frango no churrasco a preços acessíveis se lhe dissessem que com isso salvava a vida (querem lá saber, eles que os vão comer!) dos desgraçados dos pintaínhos?

Mas claro que não gostamos de saber estas coisas, nós, que somos pessoas sensíveis, daquelas que não matam galinhas (embora comam as galinhas que outros matam). E logo nos luz o olhinho compassivo ao sabermos que na Suíça a tal sexação está proibida – os avicultores estão obrigados a adquirir um espectrofotómetro, que é a designação popular para as máquinas de fazer a distinção sexual ainda no ovo. Com essa prática bem mais humanizada o pintainhos deixam de ser tão desumanamente trucidados e são humanamente liquidados ainda antes de nascer. É o que se faz também na Alemanha e na França.
Mas haverá alternativa, mais bioética, digamos assim, que nos poupe aos escrúpulos que um bom frango na púcara se prepara para nos impor cada vez que nos é proposto no menu do restaurante de que nos recomendaram a especialidade? Sim, por exemplo os dois grandes gigantes da produção de frangos e de ovos, a Coop Suíça e a Coop Itália, permitem que todos os pintainhos da galinhas poedeiras, sem distinção de cor, raça ou género, possam nascer e crescer. Embora com distintos destinos, claro: elas para serem poedeiras; eles (embora cresçam menos que pintainhos das galinhas para carne) para crescerem livres da trituração e acabarem antes daí a uns mesitos no prato ou na púcara de uma data de restaurantes.

Tudo isto me deixou a pensar numa data de coisas. Algumas é fácil de imaginar quais serão e prefiro não falar mais nisso. Mas depois pensei também que o abandono e a proibição da prática da trituração adoptada em França, Alemanha e outros países europeus, vencendo a resistência da indústria avícola não se deve provavelmente aos corações mais sensíveis dos deputados ou dos governantes desses países. Para a decisão dos parlamentos e dos governos ter sido possível foi preciso, primeiro, que tivessem tomado conhecimento do horror da tal maceração ou sequer para saberem da existência de tal prática; foi preciso, em segundo lugar, estarem preparados para vencer a resistência que forçosamente seria levantada pelos avicultores e agricultores – e sabemos como eles não são nada bons de assoar e como funcionam à base de argumentos mais palpáveis do que os bons sentimentos. O governo francês, por exemplo, foi ao ponto de subsidiar 40% do preço dos tais espectrofotómetros.
E chegamos ao ponto onde eu queria chegar: para vencer a resistência da indústria dos frangos e dos ovos – que todo o bom deputado e governante logo traduz em números de votos e em verbas orçamentais – teve de intervir uma força maior a acenar-lhes com um maço de votos ainda mais gordo e mais poderoso. Teve de haver gente que se mobilizou para lhes mostrar o hediondo daquelas práticas, para fazer lóbi e petições e mobilizar a opinião pública.
Se querem saber a verdade, são coisas como estas que podem ainda fazer-nos alimentar alguma esperança na Humanidade: que haja pessoas que se movam por tais causas sem que as mova o cálculo económico ou político ou a sede de poder (os pintainhos não votam, nem vão organizar nenhuma homenagem pública de agradecimento). E quem diz pintainhos, diz ursos polares ou baleias ou linces ou qualquer outro destes nossos companheiros de aventura num planeta onde viemos calhar sei lá como).

PS: queria pôr na foto apenas as galinhas, para se apreciar a estreita camaradagem que existe entre elas. Talvez até estreita de mais, dirão elas. Mas este senhor pôs-se no meio e ficou na foto também. Espero que não leve a mal.